Milhões de pessoas passam fome todos os dias- mas, essa frase já não impressiona mais diversas pessoas. Para você ter uma ideia mais próxima da realidade; o relatório chamado “Global Report on Food Crises 2024” (Relatório global da crise alimentar) publicou que, em 2023, 281.6 milhões de pessoas ou 215 por cento da população analisada enfrentaram altos níveis de insegurança alimentar aguda em 59 países/territórios com crise alimentar. Estatísticas frias se tornaram um ruído distante.
Além disso, se eu te disser que mais de 343 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar severa? Você saberia explicar o isso significa? Que 343 milhões de pessoas não sabem se terão algo para comer amanhã. E mesmo assim, talvez sua reação de muitos ainda seja apática, pois a maioria está na África, longe da sua realidade. Mas e se eu te disser que mais 17 milhões de crianças com menos de cinco anos estão gravemente desnutridas? Talvez, isso mexa um pouco mais com os leitores. Segundo o Programa Mundial da Fome, esse número pode ser ainda maior neste ano de 2025 e chegar a 377 milhões de pessoas vivendo com insegurança alimentar.
A fome não é apenas um problema estatístico. Ela é uma sentença de morte lenta e evitável. Como bem apontou Martín Caparrós em seu livro A Fome: “Nenhuma praga é tão letal e, ao mesmo tempo, tão evitável quanto a fome.” E o mais chocante? A humanidade produz alimentos suficientes para alimentar mais do que o dobro da população mundial. Ainda assim, mais 25 mil pessoas morrem diariamente por causas relacionadas à fome. (Livro “A fome”)

Causas e perspectivas atuais da fome
A crise alimentar global foi impulsionada principalmente por três fatores: conflitos e insegurança, eventos climáticos extremos e choques econômicos.
Os conflitos foram o principal fator de insegurança alimentar em 20 países, afetando 135 milhões de pessoas. Estes resultam na destruição de terras agrícolas, bloqueios a suprimentos de alimentos, e deslocamento forçado da população envolvida. O número de eventos de conflito aumentou 12% em 2023 em relação a 2022 e vem crescendo a cada ano. Os locais mais afetados incluem Sudão, Palestina (Faixa de Gaza), Haiti, Mianmar, Síria e Iêmen- este último possui uma das maiores, se não a maior crise de desnutrição e fome mundial.
O deslocamento populacional e migração também têm um grande impacto na crise alimentar; isso porque número de pessoas deslocadas à força atingiu 90,2 milhões em 2023. Para que tenham uma dimensão deste número- 80% da população da Faixa de Gaza foi deslocada internamente. No Sudão, 9 milhões de pessoas foram deslocadas internamente, tornando-se a maior crise de deslocamento interno do mundo. Países receptores de grandes populações de refugiados e migrantes, como Colômbia, Bangladesh e Egito, registram altos níveis de insegurança alimentar entre essas populações. Após os conflitos, o retorno para casa nem sempre significa segurança: muitos deslocados enfrentam a perda de terras e meios de subsistência, agravando a fome.
Somado a isso temos os eventos climáticos extremos e impacto na Agricultura. Este outro ponto tem sido cada vez mais recorrente também: terremotos, vulcões, chuvas, furacões. Um dos mais famosos, o fenômeno El Niño intensificou secas e inundações em várias partes do mundo, afetando 18 países e 72 milhões de pessoas. Regiões da África e do Sul da Ásia sofreram perda significativa na produção agrícola, aumentando a fome e impulsionando migrações. Concorrência por recursos como água e terras agrícolas pode levar a novos conflitos, exacerbando crises já existentes.

E um ponto também discutido no Relatório Global da Crise Alimentar é o impacto econômico e aumento dos preços; em 2023, por exemplo, os choques econômicos foram a principal causa de insegurança alimentar em 21 países, afetando 75 milhões de pessoas. A inflação, alta de juros e desvalorização das moedas dificultaram a compra de alimentos para milhões de pessoas ao redor do mundo. Apesar da queda nos preços internacionais dos alimentos, os países de baixa renda não sentiram os benefícios, pois continuam enfrentando altos custos de importação. Países como Sudão do Sul e Djibouti foram duramente impactados por crises econômicas combinadas com conflitos tendo suas crises locais intensificadas.
Perspectivas sobre a fome para 2025
- A insegurança alimentar continuará crítica em zonas de conflito como Palestina (Faixa de Gaza), Sudão e Haiti;
- 1,2 milhão de pessoas estão em risco de fome extrema (Fase 5 do IPC), principalmente na Faixa de Gaza e no Sudão;
- A redução do financiamento para ajuda humanitária pode levar à diminuição na distribuição de alimentos para milhões de pessoas vulneráveis.
Trazendo mais detalhes a crise da fome no Sudão
No Sudão, a fome se entrelaça com o deslocamento forçado. Conflitos violentos já forçaram 12 milhões de pessoas a deixarem suas casas, tornando essa a pior crise humanitária da história do país. A destruição da infraestrutura, ataques a trabalhadores humanitários e a dependência de importações alimentares agravaram a situação, tornando o acesso a alimentos quase impossível. Relatos de Darfur descrevem pessoas consumindo ração animal para sobreviver.
Enquanto isso, outras crises humanitárias no mundo, como a guerra na Ucrânia, recebem ampla cobertura midiática e mobilização internacional. No entanto, a fome no Sudão permanece relegada ao esquecimento. A comparação entre as respostas a essas crises revela uma realidade cruel: nem todo sofrimento humano recebe a mesma atenção.

Ao mesmo tempo, vivemos uma contradição perturbadora. Enquanto milhões lutam para conseguir um prato de comida, a obesidade atinge níveis alarmantes. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 2 bilhões de pessoas no mundo estão obesas ou acima do peso, levando a mais de 4 milhões de mortes anuais. O paradoxo da abundância expõe falhas profundas em nosso sistema alimentar global.
O combate à fome exige ações urgentes. Organizações como o World Food Program (WFP) estimam que serão necessários mais de 17 bilhões de dólares em 2025 para mitigar os efeitos da fome global. A sensibilização e o engajamento da sociedade são cruciais. A fome não é inevitável. É um problema político, econômico e moral. Ignorá-la é uma escolha. A questão é: até quando vamos continuar escolhendo olhar para o outro lado?
Texto escrito por Patricia Savoi – Médica com título em Nutrologia pela ABRAN – Associação Brasileira de Nutrologia
Encontro da Comunidade VV
No dia 26/02, a médica nutróloga Patrícia Savoi, que faz parte da Comunidade VV, trará reflexões importantes sobre o impacto global da fome e os desafios para combatê-la.
O evento será online via Zoom e é uma oportunidade única para aprender e debater sobre uma das maiores crises humanitárias do planeta. Participe!