6 meses separam hoje daqueles dias de desespero vividos pela população do Rio Grande do Sul, após as fortes enchentes que atingiram o estado em maio de 2024. Este texto é uma crônica escrita pelo jornalista e Coordenador Humanitário da VV, Fábian Chelkanoff, que compartilha sua experiência em Encantado, uma das cidades do Vale do Taquari devastadas pela chuva.
Em uma narrativa sensível e vívida, Fábian relata os três dias que passou na região, acompanhado de mais dois amigos jornalistas, conhecendo de perto a realidade de bairros esquecidos, onde encontrou moradores que enfrentam a tragédia com resiliência. A história de Jean e Frantz, imigrantes haitianos que reconstroem suas vidas com força e determinação, mostra um lado humano da catástrofe que transformou, para sempre, o olhar de Fábian sobre a luta por dignidade em meio ao abandono.
Foram três dias intensos… já tinham muitos outros, mas naquela semana de maio de 2024, foram três dias marcantes. A Mari Serra me ligou perguntando quando eu iria para o Vale do Taquari, e eu disse que seria “na outra semana”. Ela pediu para levar dois jornalistas de fora comigo. Isso não é o tipo de notícia que se conta para outro jornalista. Eu queria partir imediatamente.
Fomos a várias cidades e chegamos a Encantado, onde o Rio Taquari cortou a cidade indo até o bairro Navegantes. Um bairro esquecido, abandonado. Sem apoio, entregue à própria sorte para o azar dos seus moradores. Leo (Leandro Barbosa) e Gabriel Schlickmann, que estavam comigo, ficaram chocados. Eu também estava.
O bairro Navegantes estava vazio e por isso ouvimos à distância uma conversa em outra língua… e foi assim que conhecemos uma nova realidade. Haitianos que saíram de um país devastado e vieram para um bairro esquecido. Um lugar onde TODAS as casas da parte baixa foram completamente submersas.
Foto: Gabriel Schlickmann
De longe, Gabriel fez o que considero a melhor imagem daquele momento. Um senhor negro, com uma camiseta azul e bermuda cinza, com galochas, retirando lama líquida do chão com uma única pá. Ele estava sozinho, sem chances de vencer aquela batalha. Esse homem me apresentou um novo mundo que transformou meu olhar e sentimento sobre tudo o que aconteceu no Rio Grande do Sul.
Seu Jean, 66 anos, veio do Haiti há 15 com a esposa e o filho. Trabalhou duro em uma grande empresa até conseguir comprar sua casa. Pouco tempo depois, teve um AVC e parou de trabalhar. Desde então não recebe qualquer auxílio. Naquele dia, ele estava removendo a lama de sua casa pela quarta vez.
Falando apenas Crioulo, Jean nos salvou com a chegada de Dorvil Frantz, um haitiano de 40 anos, casado com Cassandra e pai de Alexis. Costureiro, a água o fez perder parte de seu ateliê. Resiliente, construiu os móveis de sua casa com tijolos. Força mental. Capacidade de luta. Como ele mesmo diz: “viemos até aqui. Não vamos desistir.”
Foto: Gabriel Schlickmann
Frantz me apresentou a um mundo novo, onde fazer o bem é uma regra universal. Um lugar onde a língua não separa, mas une. Onde a amizade significa força, acolhimento, honestidade e colaboração.
Seis meses se passaram desde que os moradores do Navegantes limparam suas casas pela última vez. Infelizmente, eles vivem na expectativa de uma nova tragédia, porque foram esquecidos pelas autoridades. Foram deixados de lado, negligenciados por quem deveria cuidar de cada um.
Jean e Frantz, mesmo abandonados, me salvaram. Mesmo sem saber, salvaram minha mente. Os monstros que habitam todos nós, no meu caso, estavam atuando cada dia com mais força. Afinal, ver tudo aquilo e não traçar um paralelo com a minha vida de privilégios, é impossível.
Jean, Frantz, meus novos amigos haitianos, o Campo… todos eles me salvam dia após dia. Salvam a minha mente. As mensagens diárias trocadas com o Frantz, me salvam todos os dias. E ele nem imagina isso.
Aula gratuita VV: ansiedade climática
Diante desse relato, é visível como tragédias como essa mexem com nossa parte emocional. Muitas vezes, o sentimento de angústia toma conta ao vermos notícias sobre crise climática. O que estamos vivendo é real e afeta a todos!
É por isso que no dia 13/11, às 19h30, a VV convida você pra uma discussão sobre a ansiedade climática e como lidar com ela em tempos de crise.